Nesta série de posts vamos explorar os benefícios pragmáticos da responsabilização coletiva. Vamos falar de algumas tecnologias desenvolvidas para mobilizar e responsabilizar todas as partes interessadas na tomada de decisões em processo de mudanças sistêmicas.

A ideia de que um processo de mudança sistêmica deve envolver todo o sistema vem crescendo e ganhando força ao longo dos últimos cinquenta anos. A prática da terapia de família, por exemplo, foi desenvolvida quando os terapeutas perceberam que tratar apenas a criança é menos eficaz do que lidar com todo o sistema que contribui para a doença. Da mesma forma, as organizações muito frequentemente atribuem “o problema” a indivíduos ou a grupos de indivíduos quando o problema foi criado pelo sistema.

1966-bigUm marco importante na história da metodologia de grandes grupos, foi o surgimento da noção de “problema sistêmico”. Conceito consagrado com a publicação do clássico “The Social Psychology of Organizations” (A Psicologia Social das Organizações) por Katz e Kahn (1966), livro seminal que introduz a noção de organizações como sistemas.

Ainda no campo organizacional, podemos destacar outros dois grupos de profissionais que, na mesma época, também defendiam o envolvimento e a participação de “todo o sistema” nos processos de mudanças sistêmicas. Estou falando dos profissionais adeptos da Teoria da Gestalt e dos praticantes das metodologias desenvolvidas pelo Tavistock Institute of Human Relations.

a capacidade PARA implementar essas ideias sempre foi limitada pela falta de métodos adequados para juntar todos os envolvidos e mobilizá-los para o processo de mudança

Apesar do consenso sobre a necessidade da participação de todos os atores envolvidos em um processo de mudanças sistêmicas, isso não ocorria na prática. A capacidade de implementar essas ideias sempre foi limitada pela falta de métodos adequados para juntar todos os envolvidos no processo. Assim, pelo menos até o final da década de 50, não existia nenhuma técnica ou método que pudesse colocar em prática essas ideias.

Nesta época, os processos de mudança organizacional eram implementados em cascata. O plano ou estratégia começava no topo da hierarquia e, lentamente, era disseminado em cascata para os níveis mais baixos. No momento que o plano atingia o chão da organização, o que sobrava era uma versão diluída e totalmente descaracterizada da ideia original.

Desenvolvimento Organizacional

A década de 1980 testemunhou a consolidação de um novo campo, chamado de Desenvolvimento Organizacional (DO). Os profissionais que criaram este novo campo, desenvolveram novos métodos para reunir “o sistema” em um só lugar para tomar decisões sobre as questões sistêmicas com as quais que eles se defrontavam.

Foi nesta mesma época que surgiu a ideia de que “para trabalhar com uma questão sistêmica é preciso definir, antes, os limites do sistema, para depois identificar e incluir ‘todas as partes afetadas pela mudança'”. Esta ideia foi determinante para o surgimento das metodologias de grandes grupos utilizadas atualmente.

A história do desenvolvimento destes métodos pode ser compreendida em três períodos:

  • (1) a invenção e o desenvolvimento inicial (1980 a 1993);
  • (2) a adoção de novos métodos (1993 a 1997), e
  • (3) a difusão, experimentação, e a incorporação destes métodos (1997 até o presente).

1 – Invenção e desenvolvimento inicial das metodologias de grandes grupos

São três as principais vertentes de prensamento que tornaram possível o surgimento das metodologias de grandes grupos: (i) Mudanças dos sistemas; (ii) Foco no futuro; e (iii) A ideia de que os grandes sistemas são formados por pequenos grupos.

(i) Mudanças dos sistemas:

Fred Emery
Fred Emery

A primeira vertente que influenciou diretamente o surgimento das metodologias de grandes grupos atuais, surgiu na década de 50, com o trabalho dos pesquisadores Eric Trist e Fred Emery. O trabalho deles sobre mudanças sistêmicas em ambiente organizacionais, se desenvolveu a partir de um estudo que eles fizeram sobre os impactos da implantação de uma nova tecnologia em uma indústria mineradora de carvão no Reino Unido.

A teoria de sistemas sociotécnicos, formulada por eles, mostrou como as mudanças tecnológicas podem perturbar o funcionamento de um sistema, mesmo quando a tecnologia que se está introduzindo é mais eficiente. No estudo, eles demostraram que, apesar de ser mais eficiente, a nova tecnologia interferia negativamente nas relações sociais já estabelecidas no ambiente de trabalho da mineradora. A insatisfação causada por esta perturbação resultou em uma perda de produtividade. Assim, eles propuseram uma teoria defendendo a necessidade da realização de uma cuidadosa sincronização entre o ambiente tecnológico e o sistema social já estabelecido, para uma melhor produtividade (Emery e Trist, 1960). A pesquisa desenvolvida por Trist e Emery trabalho trouxe um novo entendimento. Eles mostraram que a mudança em uma parte do sistema (melhorias tecnológicas) pode afetar o resto do sistema (como as pessoas colaboram umas com as outras), e isso leva a efeitos imprevisíveis. Assim, “para realizar uma mudança sustentável, é preciso estar atento ao sistema como um todo. É preciso realizar uma intervenção sistêmica”, concluíram eles.

Eric Trist
Eric Trist

O trabalho de Trist e Emery, na Grã-Bretanha, foi seguido, uma década mais tarde, nos Estados Unidos, pelo trabalho de Katz e Kahn (1978) (já mencionado anteriormente). O trabalho de Katz e Kahn teve um grande impacto no campo do comportamento organizacional, e o livro publicado por eles (também já mencionado anteriormente) tornou-se um texto padrão.

(ii) Foco no futuro

A segunda vertente precursora pode ser caracterizada como uma “mudança de foco”. Sai de cena o foco na resolução de problemas organizacionais enraizados no passado, e entra em cena o foco no potencial futuro. Isso ocorreu tanto na América do Norte quanto na Grã-Bretanha.

No fim dos anos 1960, nos Estados Unidos, Herb Shepard – um dos primeiros adeptos das práticas de Desenvolvimento Organizacional – começou a trabalhar no que ele chamava de “planejamento de vida”. A nova prática consistia em exercícios experimentais em que as pessoas criavam os seus “futuros desejados”. Ele descobriu que o ato de “projetar o próprio futuro” criava uma energia positiva para a mudança no nível individual.

Ronald Lippitt
Ronald Lippitt

Quase ao o mesmo tempo, Ronald Lippitt, da Universidade de Michigan, em seu trabalho de resolução de problemas com os clientes organizacionais, concluiu que lidar com problemas drena energia. Em contraste, ele descobriu que as pessoas são energizadas quando estimuladas a inventarem o futuro que elas querem desfrutar.

O primeiro trabalho em grande escala realizado por Lippitt, foi feito em cidades devastadas pelo fechamento de fábricas de automóveis no estado de Michigan. Ele juntou todas as partes interessadas das cidades em grandes reuniões de grupo – até três mil pessoas em uma cidade – “para criar e planejar o seu novo futuro”. Os resultados desse trabalho são relatados, em detalhes, no livro Choosing the Future You Prefer (Lippitt, 1980). O interessante sobre este trabalho – vendo hoje em retrospecto – é que apesar dele ter sido claramente inovador, na época de seu lançamento, ele foi visto por muitos praticantes do campo como uma espécie de curiosidade. Eles não sabiam, mas aqueles foram dias importantes para o crescimento e consolidação das principais teorias sobre resolução de problemas sistêmicos organizacionais utilizados atualmente.

No Reino Unido, a mudança para uma maior ênfase sobre o futuro aconteceu quando Eric Trist e Fred Emery promoveram uma conferência para projetar a fusão de duas organizações de engenharia aeroespacial, na década de 1960. Eles pediram aos funcionários das duas empresas envolvidas na fusão, para projetarem qual tipo de empresa eles queriam criar a partir da fusão. Este processo motodológico de busca de um futuro desejado, tornou-se o hoje conhecido Search Conference Method.

(iii) grandes grupos são formados por pequenos grupos

A terceira vertente precursora foi o trabalho realizado pelo National Training Laboratory (NTL) Institute, na década de 1960, com os chamados “summer labs” (laboratórios de verão) na cidade de Bethel, Maine.

Estes laboratórios contaram com a participação de um grande número de pessoas em um grande processo de discussão sobre o futuro de suas comunidades. A dinâmica utilizada foi a seguinte: O grupo foi dividido em duas grandes oficinas, a oficina da comunidade, composta pelos munícipes, e a oficina da faculdade, composta por estudantes e profissionais da educação. Nesta duas oficinas os profissionais desenvolveram um método para trabalhar com grandes grupos através da criação de pequenos grupos dentro de uma estrutura maior. Isso criou um novo modelo para trabalhar com grandes grupos, que só foi plenamente desenvolvido durante os anos 1980.

Estas vertentes iniciais de trabalho convergiram em meados da década de 1980, quando, quase simultaneamente, a importância de trabalhar com todo o sistema tornou-se o foco principal para os profissionais de DO. A primeira citação clara desta nova abordagem, tem a sua primeira aparição na literatura no final da década de 1980.

A nova abordagem foi introduzida quando Marvin Weisbord escreveu o livro Productive Workplaces (1987) que tinha, segundo suas próprias palavras, a ambição de ser um compêndio da “história do pensamento sobre organizações”. Neste livro, Weibord refletiu sobre o seu trabalho em gestão de mudanças organizacionais, ressaltando o que funcionou e o que não funcionou em sua própria prática. Ele percebeu que quando ele conseguia “reunir todas as partes interessadas no mesmo espaço”, ele era capaz de criar alternativas que eram “desejadas e desejáveis”. Reunindo o pensamento expresso em seu livro, e acrescentando elementos do trabalho desenvolvido por Eric Trist e Emery Merrelyn, em suas Search Conference’s, Weibord desenvolveu o método que ele chamou de Future Search(Uma maneira de diferenciar o novo método da Search Conference, é que ele foi desenvolvido para trabalhar com um grupo de 70 ou mais pessoas, possibilitando, assim, a participação de um número maior de interessados)

Kathleen Dannemiller
Kathleen Dannemiller

Também em meados dos anos 1980, Kathie Dannemiller – aluna e colega de Ron Lippitt – foi convidada a treinar gerentes de nível médio da Ford, “para serem mais ‘pró-ativos'”. Entendendo que o sistema da Ford não encorajava esse tipo de comportamento, e que seria perda de tempo tentar realizar o trabalho, Dannemiller declinou o convite feito pela montadora.

Recusando-se a aceitar a negativa de Dannemiller, os executivos da Ford insistiram no convite e perguntaram a ela o que ela precisava para alcançar o objetivo. Depois de alguns dias de reflexão, ela propôs que eles colocassem a sua disposição 500 gerentes, por uma semana, em um local fora do ambiente onde eles queriam que a mudança fosse realizada. Este foi o nascimento do método Real Time Strategic Change – um método que envolve as partes interessadas no planejamento e na implementação de mudanças por “um futuro melhor para a organização”. O método Real Time Strategic Change é chamado agora de Whole-Scale Change (Dannemiller Tyson Associates, 2000).

O principal avanço introduzido por este método foi a possibilidade de um grande número de pessoas poder trabalhar juntas por um determinado tempo, separadas do conjunto da organização, para aperfeiçoar suas ideias até o nível em que elas estejam suficientemente amadurecidas para que toda a organização também possa trabalhar sobre elas, e tomar decisões que sejam implementadas imediatamente.

Harrison Owen
Harrison Owen

Na mesma época, mas utilizando uma estrutura bastante diferente, Harrison Owen criou um novo método de reunir pessoas, para discutir um tópico “com paixão e energia”. Ele chamou o novo método de Open Space (Owen, 1997). A exemplo dos outros métodos já discutidos aqui, o método desenvolvido por Owen possibilita que centenas de pessoas possam participar na criação da agenda da reunião – que normalmente dura de um a dois dias – para discutir os temas propostos da maneira que eles acharem melhor.

Este método não só acomoda um grande número de participantes, como também não exige que os profissionais facilitadores estejam presentes em cada mesa de discussão. Além disso, os papéis de liderança são revezados entre os participantes na mesa. Como resultado, os participantes desenvolvem novas habilidades que levam com eles para os seus locais de trabalho.

(Veja aqui o segundo post desta série)

REFERÊNCIAS:

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Hélio Teixeira - Cientista-chefe do Centro de Estudos e Pesquisa em Ciência de Dados e Inteligência Artificial do IHT - é um estudioso da aprendizagem e da criatividade humanas como processos segundo ele "participativos e sociotecnicamente distribuídos." Sua pesquisa busca entender o que ele chama de "estruturas sociotécnicas de pertencimento necessárias à emergência da aprendizagem e da criatividade nos grupos humanos, concebidos como sistemas complexos." Ele adota uma abordagem transdisciplinar, articulando saberes da ciência da complexidade, ciências da aprendizagem, psicologia social, design participativo, inteligência artificial e psicologia cognitiva. Cientista de dados especializado em modelagem de dados e inteligência artificial algorítmica. Apaixonado por Modelagem Baseada em Agentes, com predileção pelos ambientes Mesa/Python e NetLogo, e pelo desenvolvimento de algoritmos de inteligência artificial. É fundador do Instituto Hélio Teixeira (IHT), do ColaboraLab e do Programa Letramento Tecnológico.

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